Luau Drey

Luau Drey
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domingo, 21 de abril de 2013

DESPERTAR DA PAIXÃO


Acordamos e não nos levantamos.

Desde que nos apaixonamos, a cama é o nosso acampamento.
...

Despertamos cedo e ficamos conversando, recapitulando a rotina, rindo à toa.

Foi uma noite inteira assim, entre travesseiros, edredom e meus cabelos.

O quarto permanece escuro, as cortinas fechadas, o jornal empilhado na porta.

De vez em quando, um dos dois é sorteado como emissário da geladeira, para buscar suco de laranja ou água. É uma visita rápida pelos demais aposentos, na ponta dos pés para não assustar as pálpebras.

Não é aconselhável demorar pela sala, para a claridade não quebrar o encanto e nos obrigar a sair à rua. Eu sempre reclamo que tanta janela assim é desnecessário.

Somos sonâmbulos um do outro. Viciados um no outro. Intoxicados um do outro.

Passamos a noite no colchão travando histórias e revelando segredos.

A cama é o nosso hotel, nossa casa na serra, nossa residência de praia, nosso bunker, nosso pub, nossa água-furtada.

A cama é o que precisamos do mundo, o resto pode levar.

Reduzimos o universo àquele colchão que parece nos abraçar, e nos divertimos com os problemas antigos, com as dores antigas, com aquilo que nos antecedeu e ainda não era a gente.

Na verdade, sinto que estudo para o vestibular de sua memória. Olho o teto coberto de fórmulas, fotos, cenas, equações e cálculos de sua vida.

Decoro suas sobrancelhas, seus suspiros, a cicatriz no ombro. Sou uma mímica atenta do seu corpo.

Faço perguntas despropositadas - nunca prevejo o que vai cair na prova da paixão repentina.

Interesso-me por qual lugar que sentava no Arquidiocesano. Me diz que era no fundo, com as costas coladas na janela.

E você me interroga a cor do meu uniforme na escola de freiras, só de garotas. Falo rápido que era azul.

Quem teria coragem de fazer essas questões senão quem está apaixonado? Mais: quem responderia com naturalidade essas questões senão quem está completamente apaixonado?

Não nos assustamos com nenhuma gratuidade. Não estranhamos a curiosidade ou nos envergonhamos da loucura.

Intimidade é não temer o que será feito com nossas palavras.

Deitamos de lado, atravessados, você em meu peito, eu encaixado na moldura de seu pescoço. Giramos para esquerda, tonteamos para direita, argumentamos, confortamos, descrevemos nossos amigos, confessamos nossos pecados, sussurramos bobagens.

Os ouvidos se tornam rápidos como a boca. Falo e ouço na mesma hora.

Nossas mãos se beijam, nossos pés se beijam.

Tudo é intenso entre nós a ponto da lembrança criar a experiência. É como se nossos olhos fossem aquela máquina polaroid cuspindo fotos.

Os vizinhos devem suspeitar que já morremos, mas nunca estivemos tão vivos.

Um comentário:

  1. Ótimo texto. Me fez lembrar do tempo em que meu relacionamento ainda era saudável, e me convenceu de que eu preciso renovar muita coisa. Vou começar pela minha cama. Parabéns pela qualidade da sua escrita.

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