Luau Drey

Luau Drey
...

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

APENAS UM CONTO


Ele era baixo para seus padrões adolescentes de homem ideal. Mas aquilo pareceu não ter a menor importância já dentro do carro. O carro foi um episódio a parte. Tão surpreendente que a fez sentir-se especial. Sabia o quanto aquele veículo era importante e sentiu-se quase na mesma equivalência por estar dentro dele. Conforme ele contava de suas viagens e preferências ia ficando enorme perto dela. No fim da noite ele era o homem mais alto do mundo. E lindo. Tentava não olhar os olhos azuis, mas não conseguia. Desgraçadamente, lembrou da aula de genética que afirmava não ser muito comum olhos azuis em nosso país. E amava olhos claros. Tinha a sensação que de tão transparentes era possível enxergar o espírito.
Ela não conseguia comer, sentir o gosto da cachaça que compunha a caipirinha. Via os ponteiros do relógio dele e rezava em silêncio para que o tempo não passasse. Mas passava. Implacável, como sempre.
No apartamento sentiu uma vontade enorme de perguntar se podia dormir ali aquela noite. Percebeu a cama desarrumada... Algo desconcertante para ela. Herança de sua avó que afirmava que, se saíssemos de casa sem arrumar a cama, a alma não levantava. O quarto dela podia ser a maior babilônia já vista, com roupas espalhadas por todos os móveis, mas raramente saía e deixava a cama por fazer, mesmo que se atrasasse.
Teve vontade de beijá-lo inúmeras vezes, mas não o fez. Não por timidez ou receio, mas por medo. Medo de não encontrá-lo mais. Medo da magia terminar no encontrar de lábios. Medo de gostar muito. O mais incrível foi que o beijo não dado nem foi tão importante assim. Não se lamentou nem se arrependeu. Tinham tanto o que dizer um ao outro que um beijo naquele cenário talvez fosse perda de tempo. Talvez...
Como era de se esperar, sonhou com ele a noite inteira. Uma mistura do que tinha realmente acontecido com o que estava para acontecer e o que talvez jamais acontecesse. Ela tentando encaixar suas roupas no armário dele. No sonho, não havia lugar para os muitos pares de sapatos dela, e por isso começava a entrar em pânico por estar tirando a vida dele do eixo.
Ao acordar pela manhã deduziu que aquele sonho foi o choque inicial do apartamento de um homem solteiro ser tão minimamente o reflexo dele e surpreendentemente organizado. Os quadros na parede. Chegou a sentir vergonha. Se morasse sozinha há um ano, os quadros jamais estariam na parede. E, subitamente, lembrou-se que nem quadros tinha. Mas o mural de fotos, com certeza, estaria no chão.
Na ida para o trabalho repassava os segundos da noite anterior. Aguardava sua carona sentada na sala de sua casa, no mais completo silêncio. O livro emprestado, que mais parecia uma bíblia, estava dentro da bolsa. Abriu. Não leu a contra capa. Com essa publicação sairia dos seus padrões de leitura. Iniciaria sem saber do que se tratava ou quem era o autor. A primeira palavra do livro era CULPA. Culpa... Parou ali. Ele lhe emprestara outros dois livros, podia não ler aquele. Mas, pensando melhor, por que não?
Sua culpa naquele momento era simplesmente não sentir culpa.

FIM

Nenhum comentário:

Postar um comentário